“Democratizar a água é promover o acesso à água potável” – Anna Luísa Beserra
O consumo de água potável é uma das grandes preocupações mundiais, tendo sido, ao nível de diversos países, adoptados mecanismos para colmatar tais problemas que colocam a vida de milhões de pessoas em risco. Se há limitações em falar sobre o acesso a água potável em regiões com certa facilidade para obter água, complicado é ainda falar sobre acesso a água potável em regiões de seca.
Em definições mais básicas, podemos perceber a importância da água por ela ser a fonte da vida, um recurso natural essencial, seja como componente bioquímico de seres vivos, como meio de vida de várias espécies vegetais e animais e até como fator de produção de vários bens de consumo.
Dados avançados pelas Nações Unidas (2018) indicam que actualmente 1,8 bilhão de pessoas consomem água de fontes que não são protegidas contra a contaminação por fezes humanas. Mais de 80% das águas residuais geradas por atividades do homem — incluindo o esgoto caseiro — são despejadas no meio ambiente sem ser tratadas ou reutilizadas, sendo que até 2050 a população global terá aumentado em 2 bilhões de indivíduos, e a demanda por água poderá crescer até 30%.
Fazendo uma ponte com os números avançados pelas Nações Unidas, em Moçambique, dados avançados pela VOA (2018) mostram um cenário, no qual apenas 49 por cento da população tem acesso à água potável, sendo que as zonas urbanas são as mais favorecidas, com 80 por cento, comparativamente às zonas rurais onde a maior parte da população têm apenas 35 por cento de cobertura.
Ciente da necessidade de aprofundar o debate sobre as diversas problemáticas relativas ao acesso a água e água potável, a Associação de Jornalistas Ambientais e de Direitos Humanos (AJADH) teve a oportunidade de conversar com Anna Luísa Beserra, biotecnóloga, a primeira brasileira a ganhar o prémio global da ONU sobre meio ambiente.
A baiana de 21 anos, que representou Brasil, na Assembleia Geral da ONU, em Nova York, ao vencer o prêmio Jovens Campeões da Terra, decidiu nos contar um pouco sobre o seu percurso, os laboratórios nos quais parte dos seus sonhos foram moldados e mas mais do que isso, nos falar sobre o seu sonho de levar água potável para regiões afectadas pela seca.
Nos acompanhe nesta maravilhosa conversa, em forma de entrevista, com Anna Luísa Beserra (ALB), biotecnóloga, e saiba um pouco mais sobre Aqualuz – um projecto que tenciona mudar vidas no mundo e no Brasil, em particular.
AJADH: Pode nos falar da sensação de ser a primeira jovem brasileira a ganhar o prêmio global da ONU sobre meio ambiente?
ALB: Desde a inscrição na premiação, nunca pensei que tinha chance de ganhar. Foi uma grande surpresa, tanto que tive que ler o e-mail que a ONU enviou várias vezes até acreditar que eu tinha ganhado. Cheguei a pensar que enviaram por engano e outra pessoa que havia ganhado. Mas depois pulei de alegria e fui correndo contar para meus pais, que estavam na sala. Eles ficaram muito felizes e comecei a contar para o pessoal da equipe também.
AJADH: Em que momento da tua vida profissional surge esse prémio?
ALB: Após muito trabalho e esforço, durante mais de seis anos desenvolvendo a tecnologia. Depois de muitos nãos de clientes e outras premiações, de muito sacrifício no desenvolvimento da tecnologia. O ano de 2019 foi marcado por grandes conquistas.
AJADH: Pode falar do valor ambiental que o prêmio Jovens Campeões da Terra representa para si?
ALB: Essa é a melhor credibilidade que poderíamos receber. Agora, os clientes não têm mais dúvidas sobre o potencial do produto e o quão impactante ele pode ser na vida das pessoas.
AJADH: Pode fazer um “flashback” para o seu convívio com os laboratórios químicos, tendo em conta o facto de ter sido aos 15 anos que começaste a pensar no seu projecto?
ALB: Desde a época que o Aqualuz surgiu, eu costumava fugir de algumas aulas para o laboratório de biologia. Gostava de ajudar a professora a preparar as aulas e aprender mais ainda sobre as coisas. Até que ganhei de presente de aniversário de 15 anos um microscópio. Foi o melhor presente que podia ganhar e toda a minha vontade de estudar ciência só se intensificou.
AJADH: Como funciona, necessariamente, o processo da radiação ultravioleta para fazer o tratamento da água?
ALB: O Aqualuz é uma caixa de inox coberta por um vidro, um indicador que muda de cor quando a água está pronta, e uma tubulação ligada à cisterna, reservatório usado para armazenar água da chuva ou de caminhão-pipa. Hoje, mais de 1,2 milhão de famílias têm cisternas na região semiárida, são implantadas, em média, 8 mil unidades por ano pelo governo. A água armazenada passa por um filtro (que pode ser trocado anualmente por pedaços de pano de algodão), que retém as partículas sólidas.
Depois, a água é armazenada na caixa de inox, onde ocorre a desinfecção, sem utilizar compostos químicos, apenas com a exposição à radiação solar para eliminar microrganismos e impurezas. O sistema de monitoramento que muda de cor informa quando a água já está pronta para o consumo.
O Aqualuz filtra em média 30 litros de água por dia, com ciclos de filtragem que duram entre duas a quatro horas (considerando um dia ensolarado). A durabilidade é de cerca de 20 anos, com uma manutenção simples de limpeza com água e sabão mensal, troca do filtro anual, sem precisar de manutenção externa ou energia elétrica, ou seja, dando independência e acesso livre à água potável.
A eficácia é garantida por testes preliminares feitos em laboratório certificado, utilizando parâmetros do Ministério da Saúde, que mostram a redução em 99,9% da presença de bactérias de referência.
AJADH: Olhando a água como um Direito básico dos indivíduos, o que a motivou a criar o AquaLuz e que impactos espera que o mesmo traga para a vida das comunidades?
ALB: Eu sou de Salvador, capital do estado da Bahia, onde não temos problemas de falta d’água, mas aqui a gente sempre estuda muito a falta de acesso à água potável no semiárido. Isso me moveu e inspirou bastante a mudar a realidade das pessoas dessas regiões.
Após a implantação do Aqualuz, temos casos de famílias com crianças que consumiam água contaminada e ficavam doentes, ou seja, não iam para a escola, causando a baixa no rendimento escolar. Depois da implantação do Aqualuz isso reduziu bastante nas áreas contempladas.
AJADH: Sabe-se que 2013 ganhou uma bolsa para jovens cientistas oferecida pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), do governo federal. Que influência a bolsa teve para o teu sucesso profissional e que perspectivas a mesma abriu para as metas futuras?
ALB: Na verdade essa parte da notícia veiculada está incorreta, só ganhei bolsa em 2015 pela FAPESB, a do CNPq foi em 2018. Ela foi essencial.
AJADH: Voltando ao AquaLuz, pode, de forma minuciosa, nos falar sobre o processo, desde a ideia (mental) até a ideia “material”/física?
ALB: As primeiras ideias surgiram quando eu tinha 15 anos e estava no Ensino Médio. Sempre quis ser cientista e quando vi um cartaz do Prêmio Jovens Cientistas, senti ali uma grande oportunidade. Eu me inscrevi e apesar de não ter ganhado, já estava tão envolvida com o projeto que continuei o trabalho de campo, que mantive durante toda a faculdade.
O processo de desenvolvimento do Aqualuz foi muito complexo, durou 6 anos. No início, o nosso foco não era a cisterna. Não conhecíamos a cisterna e nem a região do semiárido. Tudo foi uma evolução. Demoramos alguns anos até chegar ao público-alvo e concluirmos que o cenário perfeito era o semiárido para a metodologia que usamos, que é a desinfecção solar da água. Ou seja, usamos a luz do sol farta no ambiente para matar os microrganismos da água coletada e armazenada em cisternas que são muito comuns na região.
Já na faculdade, conheci o programa do Instituto TIM. No último período, nossa equipe participou do programa Academic Work Capital (AWC), que conseguimos uma aceleração incrível e desenhamos o modelo de negócio que trabalhamos atualmente. Uma das coisas mais difíceis de startup é chegar ao modelo de negócio. Durante o programa AWC, implantamos o piloto do projeto e ganhamos também o segundo lugar do Hack Brasil.
Sem o AWC do Instituto TIM seria impossível evoluir tanto em tão pouco tempo. O programa abriu portas incríveis e os resultados de hoje são todos frutos do treinamento que recebemos. O apoio financeiro foi fundamental para a construção da versão atual do Aqualuz e para implantarmos os testes obrigatórios que comprovam a qualidade da água filtrada. Também recebemos treinamento de técnicas de abordagem ao cliente e, somente assim, conseguimos as primeiras grandes negociações, sob a supervisão da equipe do AWC. Mesmo depois do término do nosso período de acompanhamento oficial, continuamos recebendo muito apoio dos coaches do programa.
AJADH: A falta de água potável é visível em diversas partes do mundo, e em Moçambique ainda continua sendo uma realidade. Acha que a tecnologia que nos apresenta consegue minimizar ou eliminar os problemas da falta de água potável nas famílias? Em quanto tempo espera que o projecto traga resultados em grande escala, no Brasil, em particular?
ALB: Não vamos eliminar a falta de água. Nosso foco é a falta de água potável, pois é preciso que a família tenha a fonte de água e a cisterna para a implantação do Aqualuz. Hoje estamos em cinco estados no Brasil: Bahia, Alagoas, Pernambuco, Ceará e Rio Grande do Norte e esperamos atingir 900 mil pessoas em cerca de cinco anos, sendo muito otimista.
AJADH: É ainda interessante o facto de o AquaLuz basear-se na luz solar, sem produtos químicos ou filtros descartáveis. Será que a intensidade da luz pode contar na eficiência da tecnologia? Ou melhor, tendo em conta o facto de épocas frias não apresentarem, necessariamente, radiações solares de elevada intensidade, como no verão, será que há alternativas para a execução do projecto? Quer nos explicar como o AquaLuz funciona, nestas persectivas/períodos?
ALB: O cenário perfeito é o semiárido para a metodologia que usamos, que é a desinfecção solar da água. Ou seja, usamos a luz do sol farta no ambiente para matar os microrganismos da água coletada da chuva e armazenada em cisternas que são muito comuns na região. O equipamento não é feito para regiões com baixo índice de luz solar. A chuva nessas regiões ocorre apenas à noite ou em pequenos momentos. São 10 litros por equipamento e é possível reservar a água para uso em até 48h.
AJADH: É uma realidade que no Brasil cerca de 35 milhões de pessoas não tem acesso a água potável. Sendo que o Aqualuz é um dispositivo acoplado (em fase de testes) a cisternas, pensa em expandir mais no sentido de, por exemplo, atingir locais onde as pessoas tiram água do poço e/ou rios (para beber)?
ALB: Sim. Há um estudo em andamento para a desinfecção, pois a água do poço pode ter metais pesados e ser salobra. A desinfecção do Aqualuz é somente microbiológica. Não é físico-química. Atualmente, nosso equipamento é voltado para zona rural sem contaminação atmosférica, e é preciso ter uma cisterna de captação e armazenamento de água de chuva (exclusivamente) que funcione com bomba. Implantamos em famílias de baixa renda, fazendo um trabalho social associado à tecnologia de capacitação e treinamento das famílias que vão usar. Depois voltamos para monitorar o equipamento e coletar dados de impacto social e de saúde, educação e economia.
AJADH: Lê-se, em uma das entrevistas que concedeu, que disse que “até o fim do ano chegaremos a mais 700 [pessoas usando o Aqualuz]”. Como pensa em materializar tal anseio?
ALB: Estamos buscando montar projetos sociais em parceria com empresas que tenham programas de responsabilidade social para o semiárido. Estamos com 270 pessoas atualmente. A tendência é aumentar para mais de mil até o final desse ano.
AJADH: Sabe-se que pensa em expandir a tecnologia para fora do Brasil. Que vias e que metas pretende alcançar com o tal feito?
ALB: Já estamos planejando uma campanha de financiamento coletivo para expandir para a África. Estamos buscando parcerias para até os países. Nossa meta é que o Aqualuz possa quebrar barreiras e atingir todos os locais onde ele possa ser implantado. Queremos desenvolver também dessalinizador e outro filtro mais potente para resolver outros problemas relacionados a água contaminada.
AJADH: A propósito, qual é a possibilidade de, na implementação do projecto em África, Moçambique ser o primeiro país a beneficiar da iniciativa?
ALB: Estamos decidindo entre Moçambique, Angola e Madagáscar. Essa escolha depende de conseguirmos parceiros para executar o projeto.
AJADH: “A meta é democratizar o acesso a agua potável” – lê-se em uma das entrevistas. Qual mensagem pretende transmitir com a ideia de “democratização” da água?
ALB: ‘Democratizar a água’ é promover o acesso à água potável ao maior número de pessoas possível. Por isso, implantamos em famílias de baixa renda, fazendo um trabalho social associado à tecnologia de capacitação e treinamento das famílias que vão usar. Depois voltamos para monitorar o equipamento e coletar dados de impacto social e de saúde, educação e economia.
AJADH: Tendo em conta o facto de o Aqualuz limpar até 10 litros de água em 4 horas, pode explicar o método do uso da tecnologia? Ou melhor, há perspectivas de se montar um sistema mais amplo, no sentido de fazer o tratamento da água em grande escala?
ALB: Estamos desenvolvendo um equipamento com maior capacidade. A próxima versão será um modelo em que a pessoa conseguirá encaixar diversos equipamentos juntos na cisterna para filtrar 100 litros de água por ciclo.
AJADH: É sabido que o mundo tem sido desolado por diversos e graves problemas ambientais, causados maioritariamente pelo Homem. Com o curso que fez (biotecnologia na Universidade Federal da Bahia), aliado à sua Pós-Graduação em Sistemas de Gestão Integrada de Qualidade, Segurança, Meio Ambiente e Sustentabilidade, que mudanças espera implementar no mundo? Que licções, chamadas de atenção quer fazer chegar ao mundo?
ALB: Espero escalar o meu trabalho na área de acesso à água potável e saneamento, que corresponde ao objetivo de desenvolvimento sustentável 6 da ONU. A missão da startup que fundei aos 17 anos é desenvolver tecnologias hídricas que mudam vidas. O Aqualuz é a primeira delas, mas vamos desenvolver muitas outras tecnologias para resolver diferentes problemas de acesso à água e saneamento no mundo inteiro.
AJADH: A propósito, consegue nos descrever a sensação de ter sido seleccionada no meio de 158 brasileiros e ter estado entre 35 finalistas, tendo conseguido sair-se vencedora? Como foi isso Anna?
ALB: Foi uma grande surpresa para mim e me sinto muito reconhecida e feliz. Espero servir de inspiração para mais jovens.
AJADH: Olhando para o facto de o Aqualuz ser uma invenção de baixo custo, por quanto as famílias adquirem o equipamento?
ALB: O equipamento não é vendido no varejo. Criamos projetos para as empresas interessadas, com foco em Responsabilidade Social ou órgãos governamentais. A empresa custeia a implantação em uma determinada área e o equipamento é doado às famílias. Monitoramos a qualidade da água, conforme cronograma.
AJADH: É CEO da Safe Drinking Water for All (SWD), startup cujo principal produto é o Aqualuz. Como tem sido gerir uma equipe de 10 pessoas, e qual significado de a equipe ser maioritariamente composta por mulheres (pela informação que pudemos colher)?
ALB: Hoje temos algumas pessoas trabalhando voluntariamente, além dos que fazem parte da equipe. Temos cerca de 16 membros. Não há só membros na Bahia, mas também no Ceará e do Rio Grande do Norte. Minha única sócia, a Letícia, é do Ceará, por exemplo. São pessoas de áreas distintas e de diferentes gêneros sexuais. Agora estamos tentando organizar mais a equipe para termos um local fixo de trabalho, pois por enquanto é tudo feito à distância. Queremos ter alguns centros em outras cidades, em no máximo dois anos, para podermos entender a demanda específica de cada estado.
AJADH: Como pergunta final da nossa conversa, pode nos falar dos maiores problemas relacionados a água vividos no Brasil e se acredita que poderá, num futuro próximo, conseguir implementar mudanças face aos cenários vividos!?
ALB: No Brasil, temos casos de famílias com crianças que consumem água contaminada e ficam doentes, ou seja, não vão para a escola, causando a evasão escolar e baixa no rendimento. Depois da implantação do Aqualuz isso reduziu bastante nas áreas contempladas. Acreditamos que a SWD pode ter impacto econômico e social, sim, pois oferece melhor qualidade de vida para essas pessoas.
Criado em 2017, o Prêmio Jovens Campeões da Terra oferece a jovens ambientalistas o acesso à plataforma Campeões da Terra da ONU, cujos vencedores incluem chefes de Estado, cientistas e visionários ambientalistas que tenham liderança em questões ambientais.
Sérgio dos Céus Nelson
Fundador da Associação de Jornalistas Ambientais e de Direitos Humanos – AJADH